Criado no ímpeto da vitória contra a ditadura, sistema viveu três anos gloriosos. Depois, foi encostado às cordas. Fase  lulista não o socorreu. Temer tenta inviabilizá-lo, em benefício dos planos privados
Por Reinaldo Guimarães*, no Cebes
“Da Adversidade Vivemos”(Hélio Oiticica – 1937-1980)
Nas Olimpíadas de Londres, em 2012, fiquei espantado com a presença de uma grande homenagem ao NHS [National Health Service], o sistema nacional de saúde britânico, durante a cerimônia de abertura. Talvez haja algum olhar enviesado de minha parte, mas acho que a homenagem foi o clímax da festa e a que recebeu a melhor acolhida por parte do público. Fiquei me perguntando o porquê da original iniciativa e refletindo sobre a profunda, carinhosa e persistente admiração que o povo britânico devota ao seu sistema de saúde, a ponto de apresentá-lo ao mundo como uma das suas grandes iniciativas civilizatórias. Iniciativa exemplar que inspirou outros sistemas de saúde, inclusive o nosso SUS, e tornou-se uma espécie de paradigma global para sistemas de saúde de corte universal. Afinal, haviam se passado 64 anos entre a sua inauguração (julho de 1948) num país que vivia gigantescas dificuldades econômicas derivadas da devastação deixada pela guerra encerrada três anos antes.
Em 2013, o cineasta britânico Ken Loach produziu um documentário intitulado The Spirit of ’45[1] no qual retrata o ambiente britânico no imediato pós-guerra, que colocou no poder os trabalhistas derrotando Winston Churchill (o conservador que havia levado o país à vitória militar) e iniciando a construção do Welfare State. Pois foi nesse novo ambiente, instituído em 1945, que o NHS pôde ser criado, prosperar e se desenvolver, com algumas oscilações, até a ascensão de Margareth Thatcher em 1979 como chefe de governo. Foram 31 anos do que poderíamos chamar de “período de graça”, no qual o sistema de seguridade social em que o NHS esteve incluído se consolidou. Com Thatcher e seu neoliberalismo exacerbado, o NHS passou a viver sob estresse, que persiste até hoje. Entretanto, sobrevive e o povo gosta dele.
Mutatis mutandis, com a derrota do regime militar, nós também tivemos um período inspirador, que poderíamos chamar de “espírito de 1985”, cuja resultante política nem de longe teve a força moral e a radicalidade transformadora gerada pelo fim da guerra em 1945. Ainda assim, inundou o país com uma visão democrática, generosa e progressista, cuja expressão maior foi a Constituição Cidadã que trouxe em seu ventre a criação do nosso SUS. Quais as diferenças para o processo britânico? Inúmeras, tendo à frente o caráter conciliador e incompleto da nossa transição para a democracia. Mas, apesar disso, a proposta original do SUS incorporava vários elementos de salutar radicalidade. Em particular, o preceito ético de que a quantidade e a qualidade do serviço prestado não deveriam responder à capacidade de pagamento direto dos usuários e a diretriz política de que o sistema deveria estar inscrito na arquitetura da seguridade social.
Penso que muitas das dificuldades originárias do SUS decorreram da curta duração desse “espírito de 1985”. Não foram mais do que três anos, que se dissolveram em 1988, em seguida à promulgação da Constituição Cidadã. Na minha visão, naquele momento o que poderíamos chamar figurativamente de “governo Tancredo” deu lugar ao governo Sarney, com a correspondente tomada do Congresso pelo que se convencionou chamar de “Centrão”, antecessor e essencialmente similar ao que recentemente voltou a nos assombrar. De resto, é um bom indicador dessa interpretação o ocaso político de Ulysses Guimarães, inspirador maior da Constituição e de boa parte daquele “espírito de 1985”, ocaso iniciado naquele momento e consumado no 7º lugar que obteve no primeiro turno das eleições de 1989. Não custa lembrar ainda que esse ocaso foi patrocinado pelo próprio partido de Ulysses – o PMDB – que perpetrou, ali, a sua primeira grande traição após a derrota do regime militar.
A partir daí foi que começaram as desventuras do SUS, iniciadas com o abandono da proposta original de seu financiamento, que rezava corresponder a 1/3 do valor do orçamento da Seguridade Social. Em outra vertente, foi também aí que a disposição do artigo 196 da Constituição (…direito de todos e dever do Estado…) foi dando crescente lugar ao disposto no artigo 197 (…devendo sua execução ser feita … através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado…). De lá para cá, ao longo de todos os governos, esses reveses originais e estruturais foram seguidos de outros, como a captura da Agência Nacional de Saúde pelos prestadores privados e seguradoras, as dificuldades na regulamentação da Emenda 29, a rapinagem da corrupção sobre os já corroídos orçamentos e outras adversidades. Houve, naturalmente, avanços, como por exemplo a instituição da CPMF, criada por Adib Jatene e anos mais tarde extinta pelo Congresso por pura vingança política contra Lula, a criação e expansão mais recente da Estratégia da Saúde da Família, a expansão do PNI (que é anterior ao SUS), os programas subsidiados de fornecimento de medicamentos essenciais, a aproximação da política industrial e da política de saúde e alguns outros avanços. Houve ainda propostas de avanços sustentadas pelos defensores do SUS que se revelaram desastrosas em seu modo de execução, como a municipalização do sistema.
Numa outra ordem de fatores, não se deve esquecer a persistente, contínua e cada vez mais radicalizada campanha anti-SUS patrocinada pela imprensa desregulamentada e oligopolizada, expressa em “pesquisas de opinião” nas quais os não usuários do sistema manifestavam o seu descontentamento com o mesmo e por matérias pontuais com entrevistas a cidadãos mal atendidos. Olhando o todo, tenho a convicção de que desde a sua criação, o SUS foi mantido nas cordas. “Na Adversidade Vivendo”, praticamente todo o tempo. Entretanto, seguindo na luta e prestando seus imensos serviços ao povo brasileiro.
Pelo paradoxo que encerra, ainda na exposição das desventuras vale mencionar o lugar que ocuparam a política de saúde e o SUS relativamente ao conjunto das políticas sociais durante os governos reformistas de Lula e Dilma. Pois acredito ser consensual a evidência de que o maior legado desses governos esteve nelas localizado e que os carros chefes das mesmas foram as políticas compensatórias de inclusão social e de sustentação do salário mínimo e a política educacional, essa última naquilo que é de responsabilidade direta do governo federal. Tanto os resultados do Bolsa Família e de outros programas sociais quanto os efeitos dos aumentos reais do salário mínimo em termos de mobilidade social ascendente falam por si e estão sustentados por vasta e qualificada literatura, a despeito das ridículas tentativas atuais de desqualificá-los. E quanto ao SUS, o que se passou?
TEXTO-MEIO
O exame dos gastos federais como proporção do PIB com os quatro itens que compõem o orçamento da seguridade social entre 2002 e 2015 mostra o que está na tabela a seguir, segundo dados do Ministério da Fazenda[2].
2002 (A)2015 (B)B/A
Previdência Social8,09,31,16
Assistência Social0,51,53,0
Educação e Cultura1,72,71,59
Saúde1,82,11,17
As despesas com a previdência social partem de um piso bastante alto e nelas o espaço para o exercício de vontade política é bem mais restrito em virtude da rigidez da legislação sobre aposentadorias e benefícios. Daí o crescimento de apenas 16% no período Lula e Dilma. Nada disso ocorre com o setor de saúde, onde a evolução das despesas, cujo piso é regulado pelas disposições da Emenda 29, praticamente nesse piso permaneceu, crescendo 17% durante os 15 anos da série. Pelo contrário, o crescimento das despesas com educação foi significativo, chegando a quase 60% e o crescimento das despesas com a assistência social, onde estão capituladas as despesas com os programas de transferência de renda e do Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social explodiram, crescendo 200%.
Apesar dos números indicarem uma clara inclinação nas prioridades nas políticas sociais, não é simples determinar as razões dessa inclinação. Uma hipótese trafega na direção de interpretar os anseios de bem-estar da classe trabalhadora industrial mais moderna e sindicalizada, bem como dos funcionários públicos e empregados de empresas estatais, muito aderentes à posse de planos de saúde como índice de ascensão social. Esses estamentos, com forte presença histórica no lulismo e na história do Partido dos Trabalhadores podem ter influenciado de alguma forma nas escolhas que estamos examinando. No entanto, trata-se apenas de uma hipótese, a espera de uma verificação mais adequada. O que é comprovado é que essa pouca priorização foi mais uma das desventuras do SUS.
Mas, o que temos hoje? Trata-se apenas de uma continuidade do processo de erosão e resistência observado desde a sua criação? Ou há algo de novo a partir do golpe jurídico-midiático-parlamentar perpetrado em 31 de agosto? No meu ponto de vista, a partir dessa data, se inaugura um processo objetivo, não mais de desgaste, mas de destruição do SUS. Não mais de mantê-lo nas cordas, mas de nocauteá-lo e retirá-lo do ringue. É verdade que estamos ainda numa fase de declarações de intenção por parte do governo Temer, acompanhadas, aqui e ali, de estocadas objetivas de demolição sempre justificadas pelas dificuldades orçamentário-financeiras como, por exemplo, a suspensão na concessão de bolsas para residentes pelo Ministério da Educação ou a retirada da banda-larga de unidades de saúde. Mas há ameaças bem mais graves. As mais conhecidas são a proposta de planos de saúde “populares”, a mudança no regime de ressarcimento ao SUS pelos detentores de planos de saúde — que passarão a ser destinados às unidades (filantrópicas ou conveniadas) onde foram prestados os serviços e não mais ao Fundo Nacional de Saúde –, um novo regime de contabilização dos gastos com o pessoal que presta serviços intermediados por Organizações Sociais, que passarão a estar ao largo das despesas incluídas na Lei de Responsabilidade Fiscal e a troca de guarda no Mais Médicos, com a substituição dos médicos cubanos – cujos compromisso e competência estão abundantemente documentados – por brasileiros formados em escolas médicas de segunda linha em países sul-americanos.
Entretanto, a principal ferramenta que se anuncia como necessária à conquista do “equilíbrio fiscal” e que segundo literatura especializada recente[3], pode condenar à morte o nosso sistema público de saúde é a proposta de congelamento por 10 ou 20 anos dos gastos na esfera federal (executivo, legislativo e judiciário) expressa na PEC 241. Ela propõe um teto de gastos correspondentes aos realizados no ano anterior descontada a inflação. Deixo aos economistas o debate sobre se a maneira adequada de corrigir um desequilíbrio provocado no âmbito das receitas governamentais é arrochando as despesas públicas. Fixo-me nos impactos da PEC nas políticas sociais. Na linha de defesa da proposta, as autoridades proponentes afirmam que os limites de gastos estão fixados no agregado e não se pode afirmar que os impactos do arrocho vão se dar nessas políticas. Entretanto, a contar com o ambiente político crescentemente antidemocrático, pouco generoso e altamente regressivo que se avizinha, não é fácil crer que as despesas das políticas sociais serão aquelas garantidas no quadro geral de arrocho.
Em seu livro “Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira”[5], Wanderley Guilherme dos Santos cunhou o conceito de “cidadania regulada”, para caracterizar os avanços sociais importantes, embora limitados, propostos a partir do regime político parido pela Revolução de 1930. Esse conceito registra os novos direitos mas aponta seus limites, na medida em que não se enraízam em um “código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional…..definido como norma legal”.  Entendo que o SUS talvez tenha sido, entre nós, a primeira política social de corte nacional, talvez a única a ultrapassar os limites impostos pela cidadania regulada. Esse é o patrimônio que nos é dado defender.
# Notas a partir de uma exposição no encontro político-acadêmico intitulado “Em Defesa do SUS”, promovido pelo e a convite do Instituto de Medicina Social da UERJ em 28 de setembro de 2016
*Médico sanitarista. Vice-presidente da ABIFINA.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=oj0dyxbRSY
[2] Gasto Social do Governo Central – 2002 a 2015 http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/318974/Gasto+Social+Governo+Central/c4c3d5b6-8791-46fb-b5e9-57a016db24ec
[3] Emilio Chernavsky e Rafael Dubeux  – O limite aos gastos públicos na construção do Estado mínimo: algumas simulações. http://jornalggn.com.br/noticia/o-limite-aos-gastos-publicos-na-construcao-do-estado-minimo#.V5YJ7bLfco4.facebook
[4] Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Pucci de Sá e Benevides – Os Impactos Do Novo Regime Fiscal Para O Financiamento Do Sistema Único De Saúde E Para A Efetivação Do Direito À Saúde No Brasil. Ipea, Nota Técnica Nº 28 Brasília, setembro de 2016.. http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_nt_28_disoc.pdf
[5] Wanderley Guilherme dos Santos – Cidadania e Justiça: a política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1979.