segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O genocídio que o mundo esqueceu



A matança de mais de um milhão de oposicionistas na Indonésia contou com a benção dos EUA. Os responsáveis são da elite que governa hoje o país.

reprodução

São os grandes desaparecidos da Guerra Fria, o genocídio do Século XX, que quase ninguém recorda. Há 50 anos da matança de mais de um milhão de supostos militantes do Partido Comunista, a Indonésia vive uma assombrosa história de amnésia coletiva e lavagem cerebral, versão macabra de uma Macondo asiática que a tritura a verdade dos fatos como uma broca, fazendo com que os genocidas passem a ser heróis da pátria e os sobreviventes e familiares das vítimas vivam com medo de novas represálias.

O trabalho das organizações de direitos humanos e um alucinante documentário indicado ao Oscar estão começando a perfurar o muro de silêncio. Em novembro, um Tribunal Popular Internacional realizará uma sessão em Haia com uma palestra na que participarão nove juízes de destacada trajetória no campo dos direitos humanos, para avançar no reconhecimento nacional e internacional do genocídio “que contou com a cumplicidade das grandes potências ocidentais”.

O genocídio foi desatado com a intervenção do chefe do exército, o tenente-general Suharto, contra o governo populista do pai da independência nacional, Sukarno, com a desculpa de evitar que os comunistas tomassem o poder. No dia 5 de outubro de 1965, depois de conseguir o pleno controle das Forças Armadas, Suharto começou sua política de patrocinar grupos paramilitares e organizações criminosas, que começaram o trabalho de limpeza de comunistas em Jacarta e em toda a Java central, para depois se estender ao leste do país e à idílica Bali. Nesse arquipélago de três mil ilhas, com mais de cem grupos étnicos diferentes, e que tinha mais de cem milhões de habitantes naqueles Anos 60 – hoje são 255 milhões –, ninguém ficou alheio aos fatos.

Em meio à Guerra Fria e com o Vietnã como pano de fundo, a intervenção de Suharto contou com a benção dos Estados Unidos e do Reino Unido. A CIA negou qualquer tipo de vínculo com a matança, mas terminou admitindo que forneceu listas aos esquadrões da morte, através de uma tarefa na qual a embaixada estadunidense também estava envolvida. Num documento considerado “top secret”, revelado há poucos anos pela imprensa norte-americana, mostrava que o genocídio indonésio foi uma das grandes matanças do Século XX, equivalente às realizadas pelos soviéticos e pelo nazismo.

Sua magnitude é tão impressionante quanto o silêncio que veio depois. A pressão para um esclarecimento ganhou força em 2012, com o documentário do estadunidense Joshua Oppenheimer, “The Act of Killing”, e um primeiro relatório da Comissão de Direitos Humanos da Indonésia sobre o ocorrido, mas o poder da elite – a mesma que ainda hoje continua direta ou indiretamente vinculada ao fato – mantiveram o muro da impunidade erguido.

Durante a campanha eleitoral do ano passado, o atual presidente, Joko Widodo, prometeu que promoveria ações visando o esclarecimento dos fatos. Porém, uma vez eleito, relegou o tema a um segundo plano e propôs uma “solução permanente”, num trabalho em conjunto com a promotoria para buscar uma reconciliação, ou seja, eliminando a busca por verdade e justiça. Soe Tjen Marching, escritora indonésia e diretora do capítulo britânico do Tribunal Popular Internacional de Haia, acredita que somente uma campanha internacional levará o seu país a reconhecer o sucedido. “Querem uma reconciliação sem contar a verdade, sem que ninguém tenha que responder judicialmente. Ou seja, não querem justiça de nenhuma forma. A mesma sociedade indonésia está profundamente dividida. Os culpados não querem uma investigação que os faça descer do panteão dos heróis da pátria ao dos genocidas. Outros não querem agir por temor às consequências, o que afeta até mesmo alguns dos sobreviventes e familiares das vítimas”, disse ela à Carta Maior.

A reunião do Tribunal Popular Internacional, nos dias 12 e 13 de novembro em Haia terá um alto valor simbólico e político, mas chocará com uma elite que ainda domina as Forças Armadas, a polícia, a Justiça, o setor financeiro e parte do poder político parlamentar, provincial e municipal. Um dos comandantes que liderou o genocídio foi Sarwo Edhi Wibowo, cuja filha era a esposa de Susilo Bambang Yudhoyono, o presidente da Indonésia entre 2004 e 2014.

Essa mesma elite é quem maneja a versão oficial da história, através de um sistema educativo e editorial dedicado a perpetuar a amnésia coletiva. Em 2007, nove anos depois da queda de Suharto, e em meio a um julgamento por corrupção contra ele, o promotor geral Abdul Rahman Saleh vetou a distribuição e ordenou a queima de exemplares de 14 livros de história que não apresentavam o ditador como um salvador da nação, além de não responsabilizarem o Partido Comunista pelos fatos. Uma acadêmica indonésia da Universidade da Carolina do Norte, Paige Johnson Tan, analisou os textos de história publicados atualmente. “Desde a morte de Suharto (em 2008), não mudaram praticamente nada da versão histórica oficial”, escreveu ela recentemente.

Nesse hermético silêncio oficial, os documentários do estadunidense Joshua Oppenheimer tiveram um forte impacto, porque despiram a Indonésia perante o mundo. No primeiro deles, “The Act of Killing”, Oppenheimer mostra os assassinos e torturadores fazendo alarde dos seus crimes e voltando aos lugares onde ocorreram os fatos, para mostrar os detalhes (“a gente batia até matar, depois ficava tudo ensanguentado, então mudamos de método e passamos a usar arame”). A impunidade foi tanta que Oppenheimer ofereceu a Anwar Congo, um dos assassinos e fanático por cinema, a possibilidade de filmar versões de seus crimes em diversos gêneros (gangster, texto_detalhe, comédia e até musical), e ele aceitou participar das cenas, junto com alguns dos seus capangas, dirigindo e atuando. A cena final do filme é o apogeu macabro e surrealista, em forma de musical, com Anwar Congo sendo perdoado por duas de suas vítimas, que tiram os arames com os quais foram assassinadas e agradecem a ele por tê-las matado e enviado ao céu (assim mesmo, você não leu mal.)

Anwar Congo não é um devaneio dos pesadelos do passado. O genocida é um membro honorário da Pemuda Pancasila, uma organização paramilitar com três milhões de integrantes, uma das mais importantes entre as que atuaram no genocídio, entre 1965 e 1966, e que hoje conta com membros das Forças Armadas, da polícia, do parlamento, dos governos provinciais e municipais em suas fileiras. No filme, o grupo atua com total liberdade para exigir dinheiro e proteção de comerciantes chineses e vendedores ambulantes: o hoje ex-vice-presidente Muhammad Yusuf Kalla se refere aos seus membros como homens que sabem como usar a violência e que têm o direito de fazê-lo.

O documentário “The Act of Killing” foi aclamado mundialmente e indicado ao Oscar, mas não chegou a ser exibido nos cinemas da Indonésia, devido à censura – houve grande difusão em mostras de cinema privadas, além da decisão de Oppenheimer de publicar uma versão grátis em idioma indonésio no Youtube.

O segundo documentário estreou em Londres em junho, “The Look of Silence”. Nele, Oppenheimer mostra como os sobreviventes e os familiares das vítimas continuam sendo estigmatizados e perseguidos pelo Pemuda Pancasila. “É como se Hitler tivesse vencido a guerra e Himmler, um dos principais generais nazis responsáveis pelo Holocausto, fosse o herói nacional, o salvador da pátria”, comentou Oppenheimer à Carta Maior.

A busca pela justiça não será fácil. Além da resistência da elite, está o fato de que muitos dos responsáveis pelos assassinatos e muitas testemunhas dos fatos já faleceram. Segundo Soe Tjen Marching, o Tribunal Popular Internacional de Haia será um primeiro passo. “Espero que o governo peça perdão por esses crimes cometidos pelo Estado, e que admita que houve uma manipulação da história. Se o fizer, também terá que admitir que é preciso mudar a história que se ensina nas escolas e se publica nos livros, As vítimas terão que ser reconhecidas como vítimas e não como vilãs que receberam o que mereciam. É o que nós queremos”, indicou a escritora, em entrevista para a Carta Maior.

Tradução: Victor Farinelli

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