domingo, 5 de outubro de 2025

Por que a Europa Ocidental precisa da Rússia como seu bicho-papão permanente

 


Medo como governança: como as elites distraem os eleitores do fracasso econômico
Por que a Europa Ocidental precisa da Rússia como seu bicho-papão permanente












O Ocidente dominou uma arte acima de todas as outras: fabricar medo. Onde antes eram pandemias ou migrantes, agora a suposta ameaça da Rússia se tornou a nova epidemia da Europa. Ao conjurar perigos externos, as elites ocidentais distraem de suas próprias falhas econômicas e mantêm os eleitores na linha.

Nas últimas semanas, as autoridades da Dinamarca, Suécia, Noruega, Alemanha e Holanda relataram "objetos voadores suspeitos" perto de aeroportos e bases militares. Caças mexidos, aeroportos fechados, balões confundidos com drones hostis - cada incidente apresentado como se a Europa estivesse à beira da invasão.

As origens desses drones permanecem obscuras, mas as acusações voaram instantaneamente em uma direção: a Rússia. Esse reflexo se tornou um hábito. Cada evento inexplicável, não importa o quão trivial, é inflado em uma nova "pandemia de medo" com Moscou como culpada.

O objetivo imediato é transparente - convencer Washington de que a Europa enfrenta um ataque iminente e, portanto, garantir o apoio americano contínuo. Mas por baixo disso há algo mais profundo. No Ocidente de hoje, o medo se tornou a principal moeda da política.

Uma década de crises fabricadas

Por pelo menos dez anos, as elites da Europa Ocidental aperfeiçoaram o truque de redirecionar o descontentamento público inflando ameaças reais e imaginárias. Migrantes, vírus, Rússia, China – os nomes mudam, mas o método perdura. A mídia permite que as autoridades transformem qualquer desafio em uma emergência existencial, desviando a atenção do público da estagnação econômica.

O pânico migratório de 2015 foi o modelo. Supostas "hordas" da África e do Oriente Médio foram apresentadas como uma ameaça mortal para a Europa, tão assustadoras que os governos reimpuseram controles de fronteira há muito ausentes no sistema Schengen. A crise da dívida da zona do euro, que expôs a fraqueza econômica estrutural da UE, desapareceu convenientemente de vista.

Então veio o Covid-19. Em poucas semanas, os governos europeus incutiram "terror perfeito" em seus cidadãos, que aceitaram restrições abrangentes às suas liberdades e esqueceram suas queixas econômicas. Foi, do ponto de vista das elites, um sucesso extraordinário.

E em 2022, a operação militar da Rússia na Ucrânia proporcionou o maior presente de todos. Isso não foi porque a UE tinha os meios ou a vontade de se militarizar totalmente – não tem. Mas o conflito deu aos círculos governantes um foco pronto para a raiva pública. Tudo poderia ser atribuído a Moscou: inflação, estagnação, insegurança. O medo da Rússia tornou-se a mais recente pandemia e confiável.

Política como gestão do medo

Os resultados são visíveis nas urnas. Nas últimas eleições na Alemanha, França e Reino Unido, os eleitores responderam não a visões de crescimento ou reforma, mas a narrativas de perigo. As elites europeias, impotentes diante dos desafios econômicos, conseguiram garantir os votos de dois terços dos eleitorados manipulando o medo.

É o oposto da sátira em 'Não Olhe para Cima'. No filme, os cidadãos negam o asteróide claramente visível acima deles. No Ocidente real, os eleitores são pressionados a olhar apenas para os perigos externos e nunca para as crises sob seus pés – inflação, desigualdade, crescimento estagnado.

O padrão é claro. Refugiados. Pandemias. Moscovo. Pequim. A ameaça sempre vem de outro lugar, nunca da má administração doméstica. E a resposta é sempre a mesma: uma política de distração e controle.

A próxima 'tempestade perfeita'

O ciclo não mostra sinais de fim. Se o conflito com a Rússia diminuir sem catástrofe, outro medo será encontrado. A inteligência artificial já é uma candidata. As discussões sobre a IA substituindo os humanos em todos os campos são exageradas, mas fornecem um terreno fértil para outro pânico. Já se pode imaginar os apelos: Desligue seus telefones, proteja seus filhos, obedeça aos especialistas. Os cidadãos condicionados por anos de 'pandemias de medo' provavelmente obedecerão.

Isso não é necessariamente o produto de uma conspiração detalhada. As sociedades ocidentais se acostumaram ao pânico. O medo tornou-se parte de seu sistema de defesa psicológica, uma forma de evitar confrontar a realidade de que as eleições não trazem mudanças reais.

Comparado com o passado - revoluções, guerras, derramamento de sangue em massa - a manipulação do medo de hoje pode parecer benigna. Evita a violência, pelo menos por enquanto. Mas não é menos corrosivo. Um cidadão preso em ciclos intermináveis de pânico não pode pensar em soluções, apenas na sobrevivência. E as ideias suprimidas por muito tempo têm uma maneira de explodir de maneiras que as elites não podem prever.

A Europa Ocidental já se autodenominou um farol de liberdade e democracia. Hoje, governa através do medo – dos migrantes, das doenças, da Rússia, da própria tecnologia. É um arranjo frágil, mascarando uma decadência mais profunda. E embora possa ter sucesso no curto prazo, as consequências de longo prazo podem ser muito mais desestabilizadoras do que as crises que as elites afirmam evitar.

Este artigo foi publicado pela primeira vez pelo jornal Vzglyad e foi traduzido e editado pela equipe da RT.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

70 anos sem Getúlio, o maior dos presidentes

 

70 anos sem Getúlio, o maior dos presidentes

Sete décadas após sua morte, fatos econômicos e sociais de seu governo – a industrialização, a Petrobrás, o BNDES, a organização do serviço público, entre outros – ainda marcam o país. O suicídio criou uma mística, mas a obra é ainda maior

Getúlio Vargas mostra a mão suja de petróleo da refinaria de Mataripe – Bahia

À minha mãe, que acaba de morrer

No dia em que o maior presidente da nossa história se matou, em 24 de agosto de 1954, há 70 anos, eu estava exatamente dentro da barriga da mãe, que enfrentava uma gravidez difícil, com risco de perda da criança. Acamada, ela foi terminantemente proibida de se levantar. Porém, ao ouvir a notícia do suicídio do presidente da República, ela pulou da cama e saiu gritando pela casa: “Getúlio se matou!”. Por pouco, não fui desta para melhor (o que talvez não fosse mal, uma vez que, como escreveu Heine, “o sono é bom, a morte melhor, melhor mesmo seria nunca ter nascido”.)

Dominada por getulistas, a família de minha mãe, os Pinheiros de Minas Gerais, ficou desolada, assim como a grande maioria do povo brasileiro. A morte de Getúlio desencadeou comoção popular sem precedentes e adiou por dez anos o golpe que militares e civis reacionários e entreguistas tramavam para derrubá-lo. Essa comoção é uma das muitas provas de que ele foi, de fato, o maior presidente da história do Brasil.

Os lulistas que me perdoem, mas o atual presidente seria um segundo lugar, no meu modesto entender, à frente de dois outros grandes presidentes que governaram o Brasil por menos tempo: Juscelino Kubitschek (1956-1961) e Ernesto Geisel (1974-1979), ambos por mandato de cinco anos. Lula já governou quase dez anos e, se reeleito em 2026, como esperamos que seja, terá completado 16 anos na Presidência ao final do seu quarto governo. Getúlio permanece, entretanto, o presidente mais longevo da história, com 19 anos no cargo (1930-1945 e 1951-1954).

Não é por duração no cargo, evidentemente, que Getúlio deve ser considerado o maior presidente de todos os tempos. O que importa é a sua extraordinária quantidade de grandes feitos, que deixaram marcas indeléveis.

Antes de enumerá-los, faço duas rápidas digressões. Primeira: ninguém pode negar que Lula é um gigante, talvez hoje um dos principais líderes do planeta. Realizou muito nos seus dois primeiros mandatos, sobretudo no segundo. Resistiu heroicamente a uma perseguição implacável. Procura agora realizar mais ainda, defrontando-se, porém, com a pesadíssima herança recebida de Jair Bolsonaro e com a sabotagem permanente da turma da bufunfa. Lula se destaca entre todos os presidentes, pelo que fez e está fazendo em termos de combate à pobreza e distribuição de renda. Pode ser considerado um sucessor de Getúlio, em que pese certa ambivalência dele e do PT em relação à era Vargas.

Segunda rápida digressão: os quatro presidentes mencionados têm pelo menos um ponto em comum: lideraram governos marcados pela combinação de desenvolvimento com nacionalismo e suscitaram a hostilidade dos setores mais conservadores da sociedade brasileira. Isso vale principalmente para os presidentes civis, mas até Geisel teve que enfrentar a insubordinação do general Ednardo D´Avila, comandante do Segundo Exército em São Paulo, antro de tortura e assassinatos políticos. Teve, também que abortar uma tentativa de golpe comandada por seu ministro do Exército, Sílvio Frota, líder da linha dura. Foi o que permitiu a continuação da “distensão política lenta, segura e gradual” iniciada por Geisel e que daria fim à ditadura militar no início da década de 1980. Um parêntese: a inclusão de Geisel entre os mais importantes presidentes pode causar estranheza; prometo explicar melhor em outra ocasião.

Realizações econômicas e sociais do Getúlio

Lula e Juscelino são presidentes democráticos, eleitos pelo voto direto. Getúlio só o foi na sua segunda fase como presidente, quando voltou ao poder por eleição direta com uma vitória estrondosa em 1950.

Mesmo assim, qualquer um sofre na comparação com Getúlio. Não sei se os brasileiros, mesmo os que tiveram a oportunidade de se educar, fazem uma ideia, ainda que remota, do que foram os seus governos. A lista de realizações é longa, vou procurar resumi-las, sem a pretensão de mencionar sequer todas as principais.

No campo econômico, Getúlio reagiu à Grande Depressão dos anos 1930 com uma política de intervenção econômica e defesa do preço do café, então nosso principal produto de exportação, o que permitiu suavizar e abreviar o impacto da crise internacional sobre a economia brasileira. Praticou o que Celso Furtado denominou de “keynesianismo antes de Keynes”. Em consequência, a economia brasileira se recuperou antes da maioria das demais. Já a Argentina, apegada ao grande sucesso da sua economia primário-exportadora até 1929, adotou uma linha econômica liberal e experimentou uma crise muito mais severa. Enquanto a Argentina naufragava, o Brasil de Getúlio deu partida à fase mais intensa de industrialização brasileira, com o centro dinâmico da economia se deslocando do setor agroexportador para o mercado interno, como destacou Furtado.

Em 1941, Getúlio cria a Companhia Siderúrgica Nacional, explorando a rivalidade entre o Terceiro Reich e os Estados Unidos, e conseguindo assim o apoio americano para o estabelecimento da empresa. Em 1942, ele cria a Vale do Rio Doce, cujo primeiro presidente foi Israel Pinheiro, meu tio-avô e avô do economista André Lara Resende. No seu segundo mandato, em 1952, Getúlio cria o BNDE (hoje BNDES). E a Petrobrás em 1953, sob forte resistência do capital estrangeiro e seus aliados domésticos. Só não conseguiu criar a Eletrobrás, que surgiria em 1961 com JK.

Boa parte das empresas estatais estratégicas para o desenvolvimento do Brasil remonta, portanto, à Era Vargas. Não por acaso, coube ao presidente Fernando Henrique Cardoso, neoliberal e entreguista, líder da “privataria”, anunciar pretensiosamente que poria “fim à Era Vargas”. O que FHC pôs no lugar estamos procurando até hoje. O que houve nos governos dele foi um processo acelerado e mal conduzido de privatização, de 1995 em diante, que desaguaria nas privatizações infames de Paulo Guedes no governo Bolsonaro.

Mas não foi só no terreno econômico que Getúlio trouxe mudanças fundamentais. Foi ele que instituiu as leis trabalhistas, em 1934, prevendo direitos para os trabalhadores, como salário mínimo, jornada de oito horas, férias remuneradas e liberdade sindical. Foi no seu governo que se estabeleceu o voto da mulher, em 1932, realizando antiga reivindicação das lideranças femininas. Não por acaso, Getúlio volta em 1951 à Presidência “nos braços do povo”, como ele diria na sua carta-testamento três anos depois. Não por acaso, as suas políticas suscitaram intensa hostilidade de grande parte, provavelmente da maior parte da retrógrada e predatória elite brasileira.

Os falsos democratas

Getúlio foi derrubado por um golpe militar em 1945. Veio então a presidência do marechal Eurico Gaspar Dutra, de triste memória, marcada pela implantação de uma política liberal desastrosa e pela subordinação aos interesses dos Estados Unidos. Em 1950, porém, retoma o desenvolvimentismo após derrotar o candidato da União Democrática Nacional (UDN), o brigadeiro Eduardo Gomes, cujo lema de campanha era “vote no brigadeiro, ele é bonito e é solteiro” e que chegara a dizer que “não necessitava dos votos dessa malta de desocupados, que apoia o ditador [Getúlio], para eleger-me Presidente da República”.

A UDN só era democrática no nome. Tinha pouca competitividade eleitoral, perdia quase todas para o getulismo e logo ia bater nas portas dos quartéis, pedindo intervenção militar. Ela foi derrotada não só em 1950, mas em 1955 quando Juscelino se elegeu. E JK teria sido provavelmente eleito em 1965, não fosse o golpe militar de 1964, insuflado e liderado pelos “democratas” da UDN.

Diga-se de passagem que a direita brasileira só conseguiu vencer eleições presidenciais quando apelou para figuras exóticas e destrambelhadas, porém carismáticas – Jânio Quadros em 1960, Fernando Collor em 1989 e Jair Bolsonaro em 2018. A eleição e reeleição de Fernando Henrique Cardoso, um político sem carisma e até então sem grande projeção, um “presidente acidental”, como ele mesmo disse, só foram possíveis em circunstâncias muito especiais – com o Plano Real em 1994 e um gigantesco estelionato eleitoral em 1998. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de FHC, sucessor da velha UDN anti-Getúlio, também só era democrático e social-democrata no nome, tendo os seus integrantes e seguidores, em grande maioria, embarcado alegremente no golpe parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016. Foi a UDN, comandada por Carlos Lacerda, um demagogo radical de direita, que arquitetou junto a militares entreguistas o golpe que seria abortado pelo suicídio de Getúlio há 70 anos.

Getúlio saiu da vida para entrar na história, como disse na sua carta-testamento, documento que merece ser lido até hoje, pois expressa magistralmente as aspirações de desenvolvimento e justiça social que continuamos buscando.

Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.

domingo, 28 de julho de 2024

A privatização da Sabesp é um escândalo

 

A privatização da Sabesp é um escândalo


A Sabesp é a maior empresa de saneamento do Brasil, e vem batendo recordes de lucratividade ano após ano. Mesmo assim, o governo de Tarcísio de Freitas decidiu entregar a empresa para a Equatorial, em um leilão sem concorrência.

Nesta semana assistimos a mais um episódio corriqueiro do capitalismo brasileiro.


Uma empresa estatal lucrativa, a Sabesp, foi dada de presente para a turma do mercado financeiro em um processo de privatização pouco transparente. 


Na imprensa, predominou a opinião hegemônica privatista, que está calcada naquela ladainha de sempre: a venda é positiva porque livrará a empresa das amarras políticas do estado e consequentemente a tornará mais eficiente. 


Esse é o roteiro manjado das privatizações no Brasil. O fim é invariavelmente o mesmo: demissão em massa, programas de demissão voluntária, corte de gastos, terceirizações e, consequentemente, acionistas ficando mais ricos e a população sofrendo com a piora na qualidade dos serviços prestados. 


A Sabesp é a maior empresa de saneamento do Brasil e uma das maiores do mundo, e vem batendo recordes de lucratividade ano após ano. Mesmo assim, o governador Tarcísio de Freitas – junto com os grandes tubarões da Faria Lima – decidiu entregar a empresa para a iniciativa privada. Tudo feito sob os aplausos de uma imprensa historicamente comprometida com a agenda privatista.


O governo de São Paulo recebeu 14,8 bilhões de reais por 32% das ações da companhia. Agora, com apenas 18,3% do capital total, o governo perdeu o controle da empresa. Quem passa a dar as cartas é a Equatorial Energia, que arrematou a estatal com ações 22% abaixo do valor de mercado. Uma pechincha! 


A empresa pagou R$ 67 por cada ação da Sabesp e, no mesmo dia, como uma dessas mágicas que só acontecem no mercado financeiro, o valor da ação pulou para R$ 82. A explicação dos faria limers para a valorização repentina é um velho cliché: o mercado precificou os ganhos que a empresa terá com uma gestão mais moderna e eficiente. Trata-se de uma falácia que ficou evidenciada pelas recentes privatizações de serviços essenciais.


Se levarmos em conta que essa é a primeira grande atuação da empresa na área de esgoto e abastecimento de água, a fé cega no aumento da eficiência pós- privatização torna-se ainda mais ridícula. 


Lembremos o exemplo da Enel em São Paulo, a empresa que comprou a Eletropaulo prometendo eficiência, mas presta um serviço precário. Graças às demissões em massa, terceirização, precarização do trabalho e redução drástica nos custos operacionais, boa parte das cidades da Região Metropolitana de São Paulo sofreu 120 horas de apagão no ano passado. O serviço piorou, mas o lucro dos acionistas está garantido.


Eficiência sem experiência no setor?


A Equatorial é uma empresa especializada no setor elétrico, sem praticamente nenhuma experiência em saneamento básico. A companhia presta esse tipo de serviço apenas em algumas cidades do Amapá, que não tem nem 1 milhão de habitantes. Vale lembrar que o estado sofreu com um dos maiores blecautes do país em 2020. Na ocasião, quase 800 mil pessoas ficaram sem energia por 22 dias, afetando 15 dos 16 municípios do estado.


O estado é considerado pelos diretores da empresa como um "laboratório" para novos negócios no setor. Isso significa que a prestação de um serviço fundamental para quase 30 milhões de paulistas foi repassada para uma empresa sem expertise na área. Claro, com a privatização sacramentada, a Sabesp deixa de ter como objetivo principal a prestação de um bom serviço para a população para se tornar uma empresa que prioriza a geração de lucro para os acionistas. 


A falta de capacidade técnica e experiência para comandar um negócio desse porte torna-se mero detalhe para os donos da empresa e para o governador. 


É curioso notar que a Equatorial foi a única empresa a participar da concorrência. Já entrou em campo com o jogo ganho. Para poder participar, as empresas interessadas tiveram apenas 3 dias para se inscrever no processo de licitação e apresentar um grande volume de documentos. Nenhuma empresa deu conta dessas exigências, apenas a Equatorial, o que ajuda a explicar a falta de concorrência.


Mais curioso ainda é saber que até sete meses atrás, a presidente do Conselho de Administração da Sabesp fazia parte do conselho da Equatorial. Vejam que coincidência formidável! O fato em si não é ilegal, mas é de uma imoralidade absoluta, indiscutível. Infelizmente, isso não foi o suficiente para motivar a indignação dos quase sempre indignados colunistões da grande imprensa. Reinou o silêncio nas páginas da Folha e nos programas da GloboNews. 


Cobertura positiva da imprensa


O mercado financeiro parece ter o alvará do jornalismo mainstream para ignorar questões éticas. Essa mudança de lado do balcão é algo comum nos processos de privatização. Como não lembrar de Elena Landau, que participou ativamente das privatizações do governo FHC e logo depois foi trabalhar com o Opportunity, o banco de Daniel Dantas que havia acabado de comprar parte da Telebrás


Este último personagem, aliás, está presente também na privatização da Sabesp. Quem controla a Equatorial é justamente o Opportunity do senhor Daniel Dantas. Veja como é pequeno o mundinho do mercado financeiro!


Como de praxe, a cobertura da venda da Sabesp na imprensa foi amplamente positiva. A Folha, que hoje, junto com a Globo, é a principal porta-voz dos interesses do mercado financeiro, fez uma cobertura sem muito alarde e ignorou as vozes críticas. 


Na semana anterior à privatização, o jornal cometeu essa manchete: "Privatização da Sabesp chega à reta final e deve tornar empresa mais eficiente, dizem analistas". Não preciso dizer que todos os analistas consultados jogam com a cartilha neoliberal debaixo do braço. 


Essa mesma abordagem pró-mercado esteve presente em todos os processos de privatização anteriores. Os grandes conglomerados de mídia são parte do mercado financeiro e estão alinhados às pautas privatistas da direita e da extrema direita. 


Não existe lugar para opiniões de trabalhadores, sindicalistas e progressistas quando o assunto é privatização. Apenas os analistas comprometidos com o capitalismo financeiro e improdutivo brilham nas manchetes. Enquanto isso, países como EUA, França, Reino Unido e Alemanha reestatizaram os serviços de água e saneamento básico depois de péssimas experiências com as privatizações.


A venda da Sabesp é um escândalo. Não apenas pela falta de transparência do processo, mas por reverter muito pouco aos cofres do estado e entregar a gestão da água, um bem essencial à sobrevivência, nas mãos de meia dúzia de abutres do mercado financeiro que só visam lucro. 


É um grande roubo do dinheiro público, feito de forma legalizada e ovacionado na grande imprensa como um avanço do país rumo à modernidade. De quebra, Tarcísio de Freitas fortalece os laços com o mercado financeiro, ganha ainda mais simpatia da grande imprensa e, assim, vai construindo o personagem para as próximas eleições presidenciais: o tecnocrata moderno, centrista e civilizado. Será o lobo fascistoide em pele de cordeiro moderado.  


INTERCEPT BRASIL

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Lava Jato, 10 anos: se operação nunca tivesse ocorrido, Brasil seria a 3ª maior economia do mundo?

 

Lava Jato, 10 anos: se operação nunca tivesse ocorrido, Brasil seria a 3ª maior economia do mundo?

Protesto contra a corrupção no Panamá após descoberta de esquema de corrupção que envolvia pagamento de propina pela Odebrecht a políticos locais. Cidade do Panamá, 1º de março de 2017 - Sputnik Brasil, 1920, 18.03.2024
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Era uma segunda-feira de março de 2014 quando a prisão do doleiro Alberto Youssef por pagamento de propina a políticos, empresários e dirigentes da Petrobras dava início a uma das operações mais emblemáticas que já aconteceram no país: a Lava Jato, que durou até 2021. Com ela, o Brasil viveu uma das piores crises político-econômicas da história.
No início da década de 2010, o Brasil surpreendia o mundo ao se tornar a sexta maior economia do mundo, à frente inclusive do Reino Unido, que chegou a ser a principal potência mundial no século XIX. O panorama era de um país em situação de pleno emprego, longe do Mapa da Fome pela primeira vez na história e com empresas brasileiras cada vez mais presentes na América Latina, África, Ásia, Oriente Médio e até União Europeia e Estados Unidos. Mas um lava-jato de veículos em Brasília dava início a uma reviravolta a partir de 2014: o estabelecimento, apontado como um dos locais que movimentava dinheiro de origem ilegal, batizava uma operação que investigava esquemas de corrupção entre políticos, empreiteiras e a maior empresa do país, a Petrobras.
Ao longo de 79 fases e quase sete anos, a Lava Jato realizou o cumprimento de mais de mil mandados de busca e apreensão, além de ordens de prisão temporária, prisão preventiva e condução coercitiva, e colocou um ex-presidente atrás das grades: Luiz Inácio Lula da Silva, que posteriormente teve a condenação revertida por parcialidade do então juiz Sergio Moro no processo judicial. Somado a isso, o Brasil também viu a rota do crescimento inverter, quando o produto interno bruto chegou a cair 3,5% ao longo de dois anos, e ainda o impeachment de Dilma Rousseff.
Então procurador da República, Deltan Dallagnol durante coletiva da força-tarefa da operação Lava Jato, em 2016 - Sputnik Brasil, 1920, 12.03.2024
Notícias do Brasil
Lava Jato, 10 anos: da midiatização aos interesses próprios, analista avalia impactos da operação
O professor de história da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Pedro Campos avalia à Sputnik Brasil que a operação contribuiu e muito com a desindustrialização da economia brasileira e levou à falência um dos setores que mais empregavam no Brasil: a construção civil. Inclusive esse foi um dos motivos que fizeram o país em pouco tempo ver dobrar o número de pessoas desempregadas, que saltou de 7 milhões para 14 milhões.

"O Brasil chegou a constar como sexta maior economia do mundo. Tínhamos uma valorização na moeda nacional e também um crescimento econômico que chegou a colocar o Brasil na frente do Reino Unido, o que é algo realmente impressionante de pensar, historicamente o que é o Reino Unido, o que é o Brasil, e vínhamos em um processo de crescimento a ponto de, naquele ranking, [ter a expectativa de] ultrapassar em pouco tempo a França e logo em seguida a Alemanha", declarou.

E a euforia sob a economia brasileira embalada pelo preço nas alturas das commodities dava lugar à decepção. "De fato a operação levou a um processo de desvalorização cambial e depressão econômica que fez o Brasil descer de 6ª para 15ª economia. Depois subiu para 10ª e agora finalmente retornou ao grupo das principais economias", ressalta o especialista. Mas, para ele, caso a operação nunca tivesse ocorrido, a possibilidade é que o país viveria um cenário muito mais dinâmico, principalmente para a construção civil, um dos pilares do então crescimento brasileiro.

O que aconteceu com a Odebrecht?

Maior construtora do Brasil na época da operação, a Odebrecht era um símbolo da competitividade do país no exterior, com projetos espalhados por todo o mundo. Em 2014, chegou a empregar mais de 160 mil pessoas e faturar US$ 28,5 bilhões (R$ 142,1 bilhões em valores atuais) em um ano. Mas, tal qual outras empresas, como Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e OAS, viu a pujança ruir por conta do envolvimento em esquemas de corrupção descobertos pela Lava Jato.

"Sem sombra de dúvida, a operação Lava Jato interferiu diretamente e atrapalhou o processo de internacionalização das empreiteiras brasileiras no período recente. Então notamos justamente que essas empresas haviam se tornado grupos multinacionais com presença não só no mundo periférico, mas também nas potências tradicionais. Só a Odebrecht tinha mais de 40 obras nos Estados Unidos, obras no continente da Europa Ocidental e em vários outros locais. Porém esse processo, em boa medida, foi interrompido por conta justamente da operação Lava Jato e de todos os processos que a empresa sofreu, com a descapitalização", explica o professor da UFRRJ.

Segundo o especialista, a empresa, que mudou de nome em 2020, chegou a ser listada pela Engineering News Record, revista norte-americana que faz o ranking das maiores empreiteiras do mundo, como a sexta maior do planeta.
"Era uma empresa corrupta, sim, e, mais grave que isso, ela violava o direito do trabalhador, estava associada à ditadura brasileira e outras coisas gravíssimas. Mas agora, as outras empresas do chamado primeiro mundo são limpas, não pagam comissões e propinas?", questiona, ao apontar que a Lava Jato foi influenciada inclusive por grandes empresas de outros países, que usaram as denúncias de corrupção como arma para praticamente tirar do mapa a concorrência.
"Então, digamos assim, foi bastante positivo que a Odebrecht tivesse sofrido esse processo de denúncia de corrupção para outros grupos econômicos rivais que concorriam com ela no mercado internacional", acrescenta.
Outro fator que mostra a interferência externa na operação, lembra o professor, foi a colaboração direta do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, inclusive com juízes e agentes do sistema de Justiça do Paraná instruídos pelo órgão norte-americano. Bastou pouco mais de um ano para o país entrar em depressão econômica.
"As consequências da operação Lava Jato foram gravíssimas, então o que se deixou de arrecadar é muito maior do que o que supostamente foi devolvido para o Estado mediante os acordos de leniência, mediante todo esse processo de devolução de recursos", conclui.
Jabuticaba Sem Caroço #337 - Sputnik Brasil, 1920, 13.03.2024
Jabuticaba Sem Caroço
Dez anos de Lava Jato: os impactos na sociedade brasileira

O bolsonarismo teria existido sem a operação?

O jornalista, cientista político e professor de relações internacionais Bruno Rocha Lima enfatizou à Sputnik Brasil que a operação Lava Jato ajudou a fortalecer a direita brasileira e intensificou a polarização, historicamente ligada às disputas entre PT e PSDB. Além disso, sob o lema de combate à corrupção, ajudou a levar figuras como o hoje ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para o centro do debate no país. "Não acredito que o bolsonarismo existisse como opção política sem a operação, seria impossível. Esse crescimento se aproveitou de um discurso moralista para se projetar. Não haveria esse espaço todo se não tivesse o conluio da grande imprensa", aponta.
Isso ainda levou, conforme o especialista, à queda do projeto de poder ligado à social-democracia liderado pelo PT, além dos então partidos de oposição, como PSDB e DEM (a sigla se fundiu com o PSL e atualmente é o União Brasil) e o MDB, sempre ligado aos governos de turno. "A Petrobras seria muito mais forte, as empresas brasileiras também e o BNDES não teria sido alvo de denúncias horrorosas feitas pela direita […]. Eu entendo que o tema da corrupção deixa de ser um tabu e passa a ser visto como passível de ser combatido [após a operação], mas o governo Bolsonaro aprimora os sistemas de benefícios indiretos, de modo a sempre haver suspeita e nunca evidência", diz.
O doutor em ciência política e professor universitário Rodolfo Marques acrescenta à Sputnik Brasil ainda que a Lava Jato foi trampolim para o então promotor do Ministério Público Federal no Paraná Deltan Dallagnol e Sergio Moro emergirem na carreira política. "Em um primeiro momento, o Moro adere ao bolsonarismo, torna-se ministro de Estado, posteriormente é pré-candidato a presidente da República, mas não consegue apoio partidário. Tem a candidatura ao Senado, é eleito com uma votação muito alta, assim como Deltan Dallagnol também, como deputado federal", alega.
Apesar de ter vencido a eleição presidencial em 2022, voltando ao poder após seis anos, o especialista acredita que o PT foi o partido mais afetado pela operação, que desde então passou a ter grandes dificuldades em emplacar nomes para os Executivos nos estados e municípios brasileiros.

"O PSDB também foi afetado, houve várias lideranças envolvidas nessas investigações, como o Aécio Neves. O ex-presidente Michel Temer teve investigações contra si. Após ele sair do mandato, em 2019, ele teve uma prisão rápida, deflagrada a partir da operação Lava Jato no Rio de Janeiro. Aquela situação ali do quadrilhão do MDB, cujo caso na época estava com o juiz da Lava Jato no Rio de Janeiro, o Marcelo Bretas", finaliza.