quarta-feira, 26 de outubro de 2022

A revolução militar como origem da modernidade


Há numerosas versões do nascimento da era moderna. Nem mesmo quanto à data os historiadores se põem de acordo. Uns fazem a modernidade ter início já nos séculos 15 e 16, com o chamado Renascimento (um conceito que só foi inventado no século 19 por Jules Michelet, como demonstrou o historiador francês Lucien Febvre). Outros vêem a verdadeira ruptura, o descolar da modernidade, só no século 18, quando a filosofia do Iluminismo, a Revolução Francesa e o início da industrialização abalaram o mundo. Mas qualquer que seja a data preferida pelos historiadores e filósofos modernos para o nascimento de seu próprio mundo, numa coisa eles concordam: quase sempre conquistas positivas são tomadas como os impulsos originais. 

Consideram-se razões proeminentes para a ascensão da modernidade tanto as inovações artísticas e científicas do Renascimento italiano quanto as grandes viagens de descobrimento desde Colombo, a idéia protestante e calvinista da auto-responsabilidade do indivíduo, a libertação iluminista da superstição irracional e o surgimento da democracia moderna na França e nos EUA. No âmbito técnico-industrial, também é lembrada a invenção da máquina a vapor e do tear mecânico como “tiro de largada” do desenvolvimento social moderno. 

Esta última explicação foi ressaltada sobretudo pelo marxismo, pelo fato de se harmonizar com a doutrina filosófica do “materialismo histórico”. O verdadeiro motor da história, afirma esta doutrina, é o desenvolvimento das “forças produtivas” materiais, que repetidamente entram em conflito com as “relações de produção” tornadas muito restritas e obrigam a uma nova forma de sociedade. Por isso, para o marxismo o ponto decisivo da transformação é a industrialização: a máquina a vapor, assim diz a fórmula simplificada, teria sido a primeira a romper as “correntes das antigas relações feudais de produção”. 

Aqui salta aos olhos uma contradição gritante no argumento marxista. Pois no famoso capítulo sobre a “acumulação primitiva do capital”, Marx ocupa-se em sua obra magna de períodos que remontam a séculos antes da máquina a vapor. Não será isso uma auto-refutação do “materialismo histórico”? Se a “acumulação primitiva” e a máquina a vapor acham-se tão afastados em termos históricos, as forças produtivas da indústria não podem ter sido a causa decisiva para o nascimento do capitalismo moderno. É verdade que o modo de produção capitalista só se impôs em definitivo com a industrialização do século 19, mas, se buscarmos pelas raízes do desenvolvimento, teremos de cavar mais fundo. 

Também é lógico que o primeiro germe da modernidade, ou o “big bang” de sua dinâmica, tivesse de surgir de um meio ainda em boa parte pré-moderno, pois de outro modo não poderia ser uma “origem” no sentido rigoroso da palavra. Assim, a “primeira causa” muito precoce e a “consolidação plena” muito tardia não representam uma contradiçãoSe também é verdade que para muitas regiões do mundo e para muitos grupos sociais o início da modernização prolonga-se até o presente, é igualmente certo que o primeiríssimo impulso há de ter ocorrido num passado remoto, caso se considere a enorme extensão temporal (da prespectiva da vida de uma geração ou mesmo de uma pessoa isolada) dos processos sociais. 

O que era afinal, num passado relativamente distante, o novo, que na sequência engendrou de forma inevitável a história da modernização? Pode-se conceder plenamente ao materialismo histórico que a maior e principal relevância não coube à simples mudança de idéias e mentalidades, mas ao desenvolvimento no plano dos fatos materiais concretos. Não foi porém a força produtiva, mas pelo contrário uma retumbante força destrutiva que abriu caminho à modernização, a saber, a invenção das armas de fogo. Embora essa correlação há muito seja conhecida, nas mais célebres e consequentes teorias da modernização (inclusive o marxismo), sempre lhe foi dada pouca importância.

Foi o historiador da economia alemão Werner Sombart que, significativamente pouco antes da Primeira Guerra Mundial, em seu estudo “Guerra e Capitalismo” (1913), abordou com minúcias essa questão; naturalmente, apenas para logo se entregar à exaltação da guerra, como tantos intelectuais alemães da época. Só nos últimos anos as origens técnico-armamentistas e bélico-econômicas do capitalismo voltaram à berlinda, como no livro “Canhões e Peste” (1989), do economista alemão Karl Georg Zinn, e no trabalho “A Revolução Militar” (1990), do historiador norte-americano Geoffrey Parker. Mas tampouco estas investigações encontraram a repercussão que mereciam. Obviamente, o mundo ocidental moderno e seus ideólogos só a custo aceitam a visão de que o fundamento histórico último de seus sagrados conceitos de “liberdade” e “progresso” há de ser encontrado na invenção dos mais diabólicos instrumentos mortais da história humana. E essa relação vale também para a democracia moderna, pois a “revolução militar” permaneceu até hoje um motivo secreto da modernização. A própria bomba atômica foi uma invenção democrática do ocidente. 

A inovação das armas de fogo destruiu as formas de dominação pré-capitalistas, visto que tornou militarmente ridícula a cavalaria feudal. Já antes do invento das armas de fogo pressentira-se a consequência social das armas de alcance, pois o Segundo Concílio Lateranense proibiu no ano de 1129 o uso de balestras contra cristãos. Não por acaso, a balestra importada de culturas não-européias para a Europa por volta do ano 1000 era tida como a arma especial dos salteadores, fora-da-lei e rebeldes, incluindo figuras lendárias como Robin Hood. Quando entraram em voga as armas de distância com “cano de fogo” muito mais eficazes, foi selado o destino dos exércitos montados e trajados de armadura. 

Contudo, a arma de fogo não estava mais nas mãos de uma oposição “de baixo” que fazia frente ao domínio feudal, mas conduziu antes a uma revolução “de cima” desencadeada por príncipes e reis. Pois a produção e mobilização dos novos sistemas de armas não eram possíveis no plano de estruturas locais e descentralizadasque até então haviam marcado a reprodução social, mas exigiam uma organização inteiramente nova da sociedade, em diversos planos. As armas de fogo, sobretudo os grandes canhões, não podiam mais ser produzidos em pequenas oficinas como as armas brancas ou de arremesso pré-modernas. Por isso desenvolveu-se uma indústria de armamentos específica, que produzia canhões e mosquetes em grandes fábricas. Ao mesmo tempo, surgiu uma nova arquitetura militar de defesa, na figura de gigantescos baluartes que deviam resistir às canhonadas. Chegou-se a uma disputa inovadora entre armas ofensivas e defensivas e a uma corrida armamentista entre os estados, que persiste até aos dias de hoje.

Por obra das armas de fogo, alterou-se profundamente a estrutura dos exércitos. Os beligerantes não podiam mais se equipar por si próprios e tinham de ser providos de armas por um poder social centralizado. Por isso a organização militar da sociedade separou-se da civil. Em lugar dos cidadãos mobilizados caso a caso para as campanhas ou dos senhores locais com as suas famílias armadas surgiram os “exércitos permanentes”: nasceram as “forças armadas” como grupo social específico, e o exército tornou-se um corpo estranho na sociedade. O oficialato transformou-se de um dever pessoal de cidadãos ricos numa “profissão” moderna. A par dessa nova organização militar e das novas técnicas bélicas, também o contingente dos exércitos cresceu vertiginosamente: “As tropas armadas, entre 1500 e 1700, decuplicaram” (Geoffrey Parker). 

Indústria armamentista, corrida armamentista e manutenção de exércitos permanentemente organizados, divorciados da sociedade civil e ao mesmo tempo com forte crescimento conduziram necessariamente a uma subversão radical da economia. O grande complexo militar desvinculado da sociedade exigia uma “economia de guerra permanente“. Essa nova economia da morte estendeu-se como uma mortalha sobre as estruturas das antigas sociedades agrárias baseadas na economia natural. Como o armamento e o exército não podiam mais se apoiar na reprodução agrária local, mas tinham de ser abastecidos com recursos obtidos anonimamente em grandes espaços, eles passaram a depender da mediação do dinheiro. Produção de mercadorias e economia monetária como elementos básicos do capitalismo receberam um impulso decisivo no início da era moderna por meio do desencadeamento da economia militar e armamentista. 

Esse desenvolvimento produziu e favoreceu a subjetividade capitalista e a sua mentalidade do “fazer-mais” abstrato. A permanente carência financeira da economia de guerra conduziu, na sociedade civil, ao aumento dos capitalistas financeiros e comerciais, dos grandes tomadores de dinheiro e financiadores da guerra. Mas também a nova organização do próprio exército criou a mentalidade capitalista. Os antigos beligerantes agrários transformaram-se em “soldados”, ou seja, em pessoas que recebem o “soldo”. Eles foram os primeiros “trabalhadoresassalariados” modernos que tinham de reproduzir sua vida exclusivamente pela renda monetária e pelo consumo de mercadorias. E por isso eles não lutavam mais por metas idealizadas, mas somente por dinheiro. A eles era indiferente quem matar, pois só o soldo “contava”; com isso eles se tornaram os primeiros representantes do “trabalho abstrato” (Marx) no moderno sistema produtor de mercadorias.

Aos chefes e comandantes dos “soldados” interessava angariar recursos por meio de butins e convertê-los em dinheiro. Para tanto a renda dos butins tinha de ser maior do que os custos com a guerra. Eis a origem da racionalidade econômico-empresarial moderna. Na sua maioria, os generais e comandantes do exército do início da era moderna investiam com ganho o produto de seus butins e tornavam-se sócios do capital monetário e comercial. Não foram portanto o pacífico vendedor, o diligente poupador e o produtor cheio de idéias que marcaram o início do capitalismo, muito pelo contrário: do mesmo modo que os “soldados”, como artesãos sangrentos da arma de fogo, foram os protótipos do assalariado moderno, assim também os comandantes de exército e “condottieri” “multiplicadores de dinheiro” foram os protótipos do empresariado moderno e de sua “prontidão ao risco”. 

Como livres empresários da morte, os “condottieri” dependiam porém das grandes guerras dos poderes estatais centralizados e de sua capacidade de financiamento. A versátil relação moderna entre mercado e estado tem aqui a sua origem. Para poder financiar as indústrias de armamento e os baluartes, os gigantescos exércitos e a guerra, os estados tinham de espremer ao máximo sua população e isso, em correspondência à matéria, numa forma igualmente nova: no lugar dos antigos impostos em espécie, a tributação monetária. As pessoas foram assim obrigadas a “ganhar dinheiro” para poder pagar seus impostos ao estado. Desse modo, a economia de guerra forçou não apenas de forma direta, mas também indireta, o sistema da economia de mercado. Entre os séculos 16 e 18, a tributação do povo nos países europeus cresceu em até 2.000 %. 

Obviamente, as pessoas não se deixaram introduzir de forma voluntária na nova economia monetária e armamentista. Elas só puderam ser forçadas a tanto por intermédio de uma sangrenta repressão. A permanente economia de guerra das armas de fogo ensejou durante séculos a permanente insurreção popular e, na sua esteira, a guerra intestina permanente. A fim de poder extorquir os monstruosos tributos, os poderes centralizados estatais tiveram de construir um aparato igualmente monstruoso de polícia e administração. Todos os aparatos estatais modernos são procedentes dessa história do início da era moderna. A auto-administração local foi substituída pela administração centralizada e hierárquica, a cargo de uma burocracia cujo núcleo foi formado pelos aparelhos da tributação e da repressão interna. 

As próprias conquistas positivas da modernização trouxeram sempre o estigma dessas origens. A industrialização do século 19, tanto no aspecto tecnológico quanto no traço histórico das organizações e das mentalidades, foi uma herdeira das armas de fogo, da produção de armamentos no início da modernidade e do processo social que a seguiu. Nesse sentido, pouco admira que o vertiginoso desenvolvimento capitalista das forças produtivas desde a Primeira Revolução Industrial pudesse ocorrer senão de forma destrutiva, apesar das inovações técnicas aparentemente inocentes. A moderna democracia do ocidente é incapaz de ocultar o fato de ser herdeira da ditadura militar e armamentista do início da modernidade – e isso não só na esfera tecnológica, mas também em sua estrutura social. Sob a fina superfície dos rituais de votação e dos discursos políticos, encontramos o monstro de um aparato que administra e disciplina de forma continuada o cidadão aparentemente livre em nome da economia monetária total e da economia de guerra a ela vinculada até hoje. Em nenhuma sociedade da história houve tão grande percentual de funcionários públicos e administradores de recursos humanos, soldados e policiais; nenhuma jamais desbaratou uma parcela tão grande de seus recursos em armamentos e exército. 

As ditaduras burocráticas da “modernização tardia” no leste e no sul, com seus aparatos centralizados, não foram os antípodas, mas os agentes reincidentes da economia de guerra da história ocidental, sem contudo poderem alcançá-la. As sociedades mais burocratizadas e militarizadas são ainda, do ponto de vista estrutural, as democracias ocidentais. Também o neoliberalismo é um filho serôdio dos canhões, como demonstraram o gigantesco programa armamentista da “Reaganomics” e a história dos anos 90. A economia da morte permanecerá o inquietante legado da sociedade moderna fundada na economia de mercado até que o capitalismo-assassino se destrua a si próprio. 

Original Kanonen und Kapitalismus in www.exit-online.org. Publicado na Folha de São Paulo, 30 de Março de 1997com o titulo A Origem Destrutiva do Capitalismo e tradução de José Marcos Macedo Español English Francais

http://obeco-online.org/

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quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Lula, freio ao necrofascismo

 


O primeiro turno das eleições gerais de 2022 consolidou de vez o bolsonarismo no Brasil — fenômeno político, social e cultural cujo funcionamento ainda estamos longe de decifrar. Com uma coligação de apenas três partidos marcadamente de direita (PL, PRB e PP), e sem papas na língua, Jair Bolsonaro superou todas as pesquisas e conquistou a preferência de 51,7 milhões de eleitores, ou 43,2% dos votos válidos, acabando em segundo lugar.

A sua sigla (PL) conquistou, sozinha, 99 cadeiras na Câmara — maior bancada eleita por uma única legenda nos últimos 24 anos — e treze no Senado. Ex-ministros e aliados notórios do presidente obtiveram excelentes votações na corrida pela Câmara (Eduardo Pazuello [o mais votado do Rio de Janeiro], Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro e Ricardo Salles [terceira, quarto e quinto mais votados do país, todos de SP], Mario Frias [SP]) e pelo Senado (Marcos Pontes [SP], Damares Alves [DF], Hamilton Mourão [RS], Tereza Cristina [MS], Romário [RJ], Rogério Marinho [RN], Sergio Moro [PR]), além de se elegerem para governos estaduais (Claudio Castro [RJ]) ou irem para o segundo turno (Onyx Lorenzoni [RS], Tarcísio de Freitas [SP]).

O deputado mais votado do Brasil em 2022 é um jovem vereador bolsonarista de Belo Horizonte, Nikolas Ferreira, do PL, “consagrado para Cristo”, 26 anos, leitor de Olavo de Carvalho desde os treze. O número de policiais eleitos — além de outros defensores das pautas encabeçadas por Jair Bolsonaro, como privatizações, antipetismo e conservadorismo religioso — também é grande, formando uma significativa maioria ideológica no Congresso.

Apesar da vitória de Lula com 57,2 milhões de votos (48,4%), da expressiva votação do líder sem-teto Guilherme Boulos (segundo deputado mais votado do país), das vagas garantidas por duas indígenas (Sônia Guajajara [SP] e Célia Xakriabá [MG]), duas mulheres trans (Erika Hilton [SP] e Duda Salabert [MG]) e por lideranças do movimento negro e sem-terra, do aumento da bancada da federação PT-PCdoB-PV (80 deputados) e da federação PSOL-Rede (14 deputados) na Câmara, podemos dizer que o pleito de 2 de outubro mostrou uma incontestável legitimação do projeto bolsonarista junto à população brasileira.

Após quatro anos de governo, quase setecentas mil mortes por covid-19, gasolina e gás de cozinha mais caros do século, aumento da cesta básica, inflação a 10%, 33 milhões de brasileiros passando fome, desemprego, desmatamento recorde, rachadinhas, ligações com as milícias, privatização da Eletrobras, orçamento secreto, ameaças de golpe, simbologia nazista e supremacista etc., Bolsonaro teve mais votos do que em 2018.

Enquanto Lula precisou costurar uma ampla aliança com dez partidos, incluindo notórios ex-adversários (a começar pelo vice, Geraldo Alckmin) e figuras do complô golpista que derrubou Dilma Rousseff em 2016, Bolsonaro obteve votação similar sem fazer concessões: não amenizou o discurso fundamentalista cristão, não parou de elogiar as armas, não deixou de escrotizar mulheres e jornalistas, não calou as críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF), não voltou atrás em sua desconfiança com relação às urnas eletrônicas, não se desculpou pela gestão da pandemia nem por imitar pessoas sufocando no auge do surto de coronavírus, não engoliu nenhuma mentira — enfim, manteve a coerência de seu projeto necrofascista.

Como resultado, neste 2 de outubro o ex-capitão firmou-se como o principal líder político brasileiro da atualidade, com muita aderência popular, mesmo sem contar com o apoio de movimentos sociais organizados. A força que demonstrou é simplesmente impressionante. Um exemplo notável dessa força é o fim da hegemonia de quase trinta anos do PSDB em São Paulo — proeza do bolsonarismo —, onde a maioria dos eleitores resolveu abandonar o bairrismo ferrenho e a tradicional rivalidade com o Rio de Janeiro para votar em um ex-militar carioca filiado ao partido da Igreja Universal do Reino de Deus.

Neste momento, além do enorme respaldo nas urnas e da maioria ideológica no Congresso, Bolsonaro conta com o apoio das Forças Armadas, das polícias, do agronegócio, de boa parte dos líderes e dos fiéis das igrejas evangélicas e católicas e do capital financeiro. É uma hegemonia nunca vista na democracia brasileira. Além disso, espalhados pelo país existem milhões de cidadãos prontos para vestir a camisa verde-amarela da seleção e defender o líder nas ruas, se necessário, como ficou claro nos últimos Sete de Setembro e mesmo nestas eleições. Nunca é demais lembrar que muitas dessas pessoas têm porte de arma — contingente que só cresce, com a militância ativa do Jair.

Por tudo isso, não podemos permitir que Bolsonaro vença no segundo turno. O próximo presidente da República escolherá quatro ministros do STF. Caso essa prerrogativa seja dada ao ex-capitão, ele terá maioria também na instância mais alta do Judiciário, com seis dos onze magistrados da suprema corte — todos absolutamente alinhados a seu projeto, como os dois já indicados em seu primeiro mandato.

Apenas podemos imaginar o que um presidente confessadamente autoritário faria com tamanho poder institucional, político, social, cultural e econômico, sem que o sistema republicano de freios e contrapesos (de resto, falido) possa minimamente contê-lo. Até porque, caso realmente vença, terá derrotado, nas urnas, um dos maiores líderes políticos da história do Brasil — o que, graças ao tapetão viabilizado pelo “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”, e que resultou na prisão do petista, não aconteceu em 2018.

Neste momento, Lula é a única barreira que temos contra essa tempestade perfeita. Só Lula poderá retardar a consolidação completa do projeto bolsonarista. E agora não interessa discutir se conseguirá ou não governar. Só o que importa é deter a ditadura que Bolsonaro tanto prometeu e que obviamente conseguirá estabelecer no país, dentro das instituições, caso seja reeleito. Entretanto, tudo indica que o petista terá imensa dificuldade em conseguir os poucos votos de que precisa para atingir maioria e voltar à presidência.

O antipetismo desfilado por Simone Tebet e Ciro Gomes na campanha deixam pouca margem para uma transferência automática de votos, e o pouco mais de um milhão de eleitores de Felipe D’Ávila e Soraya Thronicke certamente irão para Bolsonaro. Talvez Tebet, pelas duras críticas que fez a Bolsonaro quanto à demora na compra de vacinas contra a covid-19, e recorrendo a manobras narrativas que ainda teremos que conhecer, consiga ajudar o petista. Ciro, por outro lado, passou os últimos dias despejando toda sua munição no ex-sindicalista e, na véspera do pleito, divulgou foto ao lado de Bolsonaro.

Lula esteve isolado na campanha. Era o único candidato de centro em um cenário dominado pela direita. Sua maior chance era ganhar no primeiro turno. Fazer mais concessões à direita, ao mercado, ao agronegócio — caminho que muito provavelmente será adotado pela campanha petista, pois esse é o DNA do lulismo — não vai adiantar: Lula não retirará votos de Bolsonaro. (É mais fácil que aconteça o contrário, pois Jair já está usando a máquina pública para adiantar e prometer mais parcelas do Auxílio Brasil.)

Por que uma pessoa identificada com a direita escolheria Lula, mesmo com todas as concessões? O máximo que podemos esperar do asco que setores mais limpinhos e civilizados da direita sentem de Bolsonaro é um voto nulo.

Esquerdizar o discurso — o que Lula jamais faria, porque nunca fez: sua trajetória política é um longo caminhar rumo ao centro — tampouco lhe amealharia melhores resultados eleitorais: apesar dos respiros progressistas vistos nas urnas, está bem claro que o país vive um momento hiperconservador e hiperneoliberal, e que todo o poder eleitoral que pode ser mobilizado pela esquerda já lhe foi destinado no primeiro turno.

Em entrevista ao Roda Viva no dia seguinte ao primeiro turno, Guilherme Boulos disse não acreditar que todas as pessoas que votaram em Bolsonaro sejam fiéis a seu projeto. “Não acho que nós temos 51 milhões de fascistas no Brasil. Essa seria uma tragédia muito maior do que a que a gente está vivendo.”

Eis a grande questão: se realmente não somos um país com 51 milhões de fascistas, por que Bolsonaro, depois de quatro anos de barbárie, continua tendo tanta popularidade? Por que nosso discurso não consegue desmobilizar o voto em Bolsonaro? Com qual outro discurso poderemos convencer um eleitor supostamente não fascista a não votar em um necrofascista?

Será a tragédia brasileira muito maior do que sugerem as urnas?


— Tadeu Breda, editor

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A ascensão da supremacia branca cristã: a conexão fascista

 8 DE SETEMBRO DE 2022


 

Imagem de Robert Anasch .

Proibições de livros em todo o país. O fundamentalismo cristão em ascensão. A supremacia branca correndo solta. Estes são sintomas de uma política fascista crescente na América.

Atores políticos reacionários buscam reforçar a supremacia branca apagando das discussões públicas qualquer reconhecimento de pessoas de cor, identidades LGBTQ e suas lutas. Uma maneira de isso acontecer é por meio da proibição de livros, que cresceu dramaticamente nos últimos anos. Somente nos primeiros oito meses de 2022, a American Library Association relata que 1.651 livros “ sem precedentes ” foram banidos das escolas e bibliotecas do país – mais que o dobro do número em 2021 e quadruplicando em relação a 2019.

A maior parte das proibições de livros está nos estados republicanos e nos campos de batalha, mais proeminentemente no Texas, Flórida, Tennessee e Pensilvânia. As proibições visam livros que se concentram em questões relacionadas a raça e anti-racismo, sexismo e anti-sexismo, identidade e preconceito LGBTQ.

Ao olharmos mais de perto para quem está por trás dessas proibições, vemos que são grupos de cidadãos reacionários, como "Mom's for Liberty" e "No Left Turn in Education", que utilizam a retórica eliminacionista para definir pessoas de cor e indivíduos não heterossexuais. existência e extraí-los da identidade nacional.

Moms for Liberty explica em sua página da web que está “empoderando os pais” e “lutando pela sobrevivência da América” ao “ensinar os princípios da liberdade em nossos lares e comunidade”. Não é preciso muita imaginação para discernir que esta é uma receita para a supremacia branca patriarcal, com a “sobrevivência” da identidade da nação definida pela censura de pessoas de cor e indivíduos LGBTQ+, enquanto “empodera” uma versão heteronormativa branca de identidade.

As dimensões fundamentalistas da supremacia branca-cristã de Moms for Liberty são difíceis de perder. Todas as mulheres que lideram a organização são brancas, e seu programa se inspira nos esforços para consolidar a nação na teocracia cristã. O coordenador do capítulo nacional do grupo anuncia abertamente que “Deus me chamou e me equipou para fazer minha parte em serviço a Ele e ao nosso país”.

Moms for Liberty não está sozinho em sua cruzada. Autoridades republicanas brancas estão pedindo explicitamente aos Estados Unidos que adotem o nacionalismo cristão. A deputada republicana da Câmara, Marjorie Taylor Greene , vê o Partido Republicano como “o partido do nacionalismo cristão”. Doug Mastriono, propagandista eleitoral da Big Lie e candidato a governador republicano da Pensilvânia, chama a separação entre Igreja e Estado de um “mito”, anunciando que “em novembro vamos tomar nosso estado de volta” dos democratas secularistas e que “meu Deus fará é assim.” Companheiro propagandista da Big Lie, apoiador insurrecional de 6 de janeiro e representante republicano Josh Hawley anunciaque “somos uma nação revolucionária porque somos os herdeiros da revolução da Bíblia – sem a Bíblia, não há América”.

A retórica republicana canaliza o eliminacionismo atacando aquelas identidades que não se encaixam no ideal nacionalista cristão elevado pelo Partido Republicano. Isso fica mais claro na afirmação de Hawley de que “nenhuma América” existe fora de uma identidade fundamentalista cristã.

Os pronunciamentos do GOP não ocorrem no vácuo. Eles fazem parte de um abraço maior à direita republicana do nacionalismo cristão e do fanatismo. Por exemplo, uma pesquisa da Universidade de Maryland de meados de 2022 descobriuque se acentua o apoio aos princípios fundamentalistas no Partido Republicano, aventurando-se no autoritarismo. Enquanto 57% dos republicanos acreditam que a Constituição dos EUA não permite que “o governo declare os EUA uma nação cristã”, 61% são a favor de fazê-lo de qualquer maneira. As diferenças dentro do partido são pronunciadas por idade, com 71% da Geração Silenciosa e 54% dos Republicanos Baby Boomer querendo declarar os EUA uma nação cristã, em comparação com 49% da Geração X e 51% dos Republicanos da Geração Y e Z, respectivamente.

O cristofascismo baseia-se na fusão da supremacia branca, autoritarismo, desprezo pelo estado de direito e direitos das minorias religiosas e o esforço eliminacionista para excluir identidades não cristãs da consciência nacional e do que significa ser “americano”.

Ela se baseia em uma base fundamentalista de longa data. Os Estados Unidos são atípicos em comparação com outros países ricos em seu compromisso com a religiosidade, medido pela porcentagem de pessoas que dizem que a religião “desempenha um papel muito importante em suas vidas”. Milhões de americanos há anos apoiam uma agenda nacionalista cristã, o que explica por que fanáticos religiosos como Greene e Hawley podem canalizar essa retórica hoje.

O fundamentalismo cristão está inscrito na história e na identidade do país. Mais da metade dos adultos dos EUA em 2022 (55%) dizem acreditar que a Constituição dos EUA é “inspirada por Deus”, enquanto 36% dos americanos e 49% dos republicanos em 2020 dizem que os EUA “são e sempre foram uma nação cristã. ” Sessenta e quatro por cento dos republicanos e 71 por cento dos protestantes evangélicos brancos concordam que “Deus concedeu aos EUA um papel especial na história humana”, em comparação com metade dos independentes (35 por cento) e menos de um terço (32 por cento) dos democratas. .

Além de amplas proclamações, um grande número de americanos expressa um apoio perturbador a mudanças políticas que elevariam ainda mais o nacionalismo cristão. Pesquisas de 2020 descobriram que quase metade dos americanos (49%), 89% dos protestantes evangélicos brancos e 67% dos republicanos acreditavam que a Bíblia “deveria influenciar as leis dos Estados Unidos”. Apenas alguns anos antes, em 2015, 57% dos republicanos concordaramO cristianismo “deve ser estabelecido como a religião nacional dos Estados Unidos”. Nessa mesma pesquisa, 28% dos americanos, 41% dos republicanos e 68% dos protestantes evangélicos brancos disseram que a Bíblia “deveria ter mais influência sobre as leis do que a vontade do povo”. Esta é uma indulgência impressionante no autoritarismo cristão que busca derrubar o estado de direito em favor do governo teocrático. Substanciais minorias de americanos – 42 e 46%, respectivamente – também queriam que os líderes religiosos “tivessem um papel direto na redação” de uma nova Constituição dos EUA e queriam que a própria Bíblia fosse “uma fonte de legislação”.

A ideologia fascista historicamente exalta personalidades patriarcais para levar as nações à “grandeza”, enquanto impõe hierarquias misóginas. O nacionalismo cristão não é diferente. Em 2020, 53% dos protestantes evangélicos brancos e 60% dos republicanos concordaram que os EUA “punem os homens por agirem como homens”, enquanto 56% dos evangélicos brancos e 63% dos republicanos concordaram que o país “tornou-se muito feminino”. Essa indulgência com a masculinidade tóxica está ligada ao autoritarismo trumpiano, com 57% dos republicanos e 55% dos republicanos evangélicos brancos sentindo que os EUA precisam de “um líder disposto a quebrar algumas regras se isso for necessário para acertar as coisas”. Essa confiança em Trump atingiu a convicção religiosa de nível cult, com quase dois terços dos apoiadores de Trumpdeclarando enquanto ele estava no cargo que não havia nada que eles pudessem pensar que ele pudesse fazer que os levasse a reconsiderar seu apoio à sua presidência.

O partidarismo de direita e o fundamentalismo religioso também estão associados ao apoio à supressão de discussões sobre como as instituições sociais são estruturadas para perpetuar o racismo. Um esmagador 70% dos evangélicos brancos e 79% dos republicanos em 2020 sentiram que os “assassinatos de homens negros pela polícia são incidentes isolados”, em comparação com 43% dos americanos em geral. Como documenta o importante estudioso religioso e cientista social Robert Jones, a relutância em reconhecer estruturas de discriminação racial e brutalidade policial está enraizada na maior suscetibilidade de cristãos americanos brancos a crenças racistas, incluindoapoio à celebração de monumentos confederados da supremacia branca, uma recusa em reconhecer os efeitos deletérios de gerações de escravidão sobre os negros americanos, suscetibilidade a estereótipos negativos que descrevem os negros como preguiçosos e indignos de assistência e uma negatividade geral e medo em relação a “pessoas de outras raças”. ”

A mistura nociva de crenças reacionárias cristo-fascistas documentadas aqui representa uma ameaça existencial ao estado de direito e à democracia secular na América. Esses valores reacionários dificilmente são novos, mas sua ascensão na era Trumpiana, juntamente com o compromisso religioso de culto dos republicanos e partidários de QAnon com Trump e com a derrubada do eleitoralismo como o conhecemos, não é um bom presságio para o futuro do país. . Os Estados Unidos podem afirmar um compromisso com a lei, o consentimento em massa, o secularismo e os princípios democráticos liberais, ou podem continuar a trilhar o caminho da crescente teocracia religiosa e do cristofascismo de supremacia branca. Não pode fazer as duas coisas.

Anthony DiMaggio é Professor Associado de Ciência Política na Lehigh University. Ele é o autor de Rising Fascism in America: It Can Happen Here (Routledge, 2022), além de  Rebellion in America  (Routledge, 2020) e  Unequal America  (Routledge, 2021). Ele pode ser contatado em:  anthonydimaggio612@gmail.com . Uma cópia digital de Rebellion in America pode ser lida gratuitamente  aqui .