quinta-feira, 30 de maio de 2024

Lava Jato, 10 anos: se operação nunca tivesse ocorrido, Brasil seria a 3ª maior economia do mundo?

 

Lava Jato, 10 anos: se operação nunca tivesse ocorrido, Brasil seria a 3ª maior economia do mundo?

Protesto contra a corrupção no Panamá após descoberta de esquema de corrupção que envolvia pagamento de propina pela Odebrecht a políticos locais. Cidade do Panamá, 1º de março de 2017 - Sputnik Brasil, 1920, 18.03.2024
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Era uma segunda-feira de março de 2014 quando a prisão do doleiro Alberto Youssef por pagamento de propina a políticos, empresários e dirigentes da Petrobras dava início a uma das operações mais emblemáticas que já aconteceram no país: a Lava Jato, que durou até 2021. Com ela, o Brasil viveu uma das piores crises político-econômicas da história.
No início da década de 2010, o Brasil surpreendia o mundo ao se tornar a sexta maior economia do mundo, à frente inclusive do Reino Unido, que chegou a ser a principal potência mundial no século XIX. O panorama era de um país em situação de pleno emprego, longe do Mapa da Fome pela primeira vez na história e com empresas brasileiras cada vez mais presentes na América Latina, África, Ásia, Oriente Médio e até União Europeia e Estados Unidos. Mas um lava-jato de veículos em Brasília dava início a uma reviravolta a partir de 2014: o estabelecimento, apontado como um dos locais que movimentava dinheiro de origem ilegal, batizava uma operação que investigava esquemas de corrupção entre políticos, empreiteiras e a maior empresa do país, a Petrobras.
Ao longo de 79 fases e quase sete anos, a Lava Jato realizou o cumprimento de mais de mil mandados de busca e apreensão, além de ordens de prisão temporária, prisão preventiva e condução coercitiva, e colocou um ex-presidente atrás das grades: Luiz Inácio Lula da Silva, que posteriormente teve a condenação revertida por parcialidade do então juiz Sergio Moro no processo judicial. Somado a isso, o Brasil também viu a rota do crescimento inverter, quando o produto interno bruto chegou a cair 3,5% ao longo de dois anos, e ainda o impeachment de Dilma Rousseff.
Então procurador da República, Deltan Dallagnol durante coletiva da força-tarefa da operação Lava Jato, em 2016 - Sputnik Brasil, 1920, 12.03.2024
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Lava Jato, 10 anos: da midiatização aos interesses próprios, analista avalia impactos da operação
O professor de história da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) Pedro Campos avalia à Sputnik Brasil que a operação contribuiu e muito com a desindustrialização da economia brasileira e levou à falência um dos setores que mais empregavam no Brasil: a construção civil. Inclusive esse foi um dos motivos que fizeram o país em pouco tempo ver dobrar o número de pessoas desempregadas, que saltou de 7 milhões para 14 milhões.

"O Brasil chegou a constar como sexta maior economia do mundo. Tínhamos uma valorização na moeda nacional e também um crescimento econômico que chegou a colocar o Brasil na frente do Reino Unido, o que é algo realmente impressionante de pensar, historicamente o que é o Reino Unido, o que é o Brasil, e vínhamos em um processo de crescimento a ponto de, naquele ranking, [ter a expectativa de] ultrapassar em pouco tempo a França e logo em seguida a Alemanha", declarou.

E a euforia sob a economia brasileira embalada pelo preço nas alturas das commodities dava lugar à decepção. "De fato a operação levou a um processo de desvalorização cambial e depressão econômica que fez o Brasil descer de 6ª para 15ª economia. Depois subiu para 10ª e agora finalmente retornou ao grupo das principais economias", ressalta o especialista. Mas, para ele, caso a operação nunca tivesse ocorrido, a possibilidade é que o país viveria um cenário muito mais dinâmico, principalmente para a construção civil, um dos pilares do então crescimento brasileiro.

O que aconteceu com a Odebrecht?

Maior construtora do Brasil na época da operação, a Odebrecht era um símbolo da competitividade do país no exterior, com projetos espalhados por todo o mundo. Em 2014, chegou a empregar mais de 160 mil pessoas e faturar US$ 28,5 bilhões (R$ 142,1 bilhões em valores atuais) em um ano. Mas, tal qual outras empresas, como Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e OAS, viu a pujança ruir por conta do envolvimento em esquemas de corrupção descobertos pela Lava Jato.

"Sem sombra de dúvida, a operação Lava Jato interferiu diretamente e atrapalhou o processo de internacionalização das empreiteiras brasileiras no período recente. Então notamos justamente que essas empresas haviam se tornado grupos multinacionais com presença não só no mundo periférico, mas também nas potências tradicionais. Só a Odebrecht tinha mais de 40 obras nos Estados Unidos, obras no continente da Europa Ocidental e em vários outros locais. Porém esse processo, em boa medida, foi interrompido por conta justamente da operação Lava Jato e de todos os processos que a empresa sofreu, com a descapitalização", explica o professor da UFRRJ.

Segundo o especialista, a empresa, que mudou de nome em 2020, chegou a ser listada pela Engineering News Record, revista norte-americana que faz o ranking das maiores empreiteiras do mundo, como a sexta maior do planeta.
"Era uma empresa corrupta, sim, e, mais grave que isso, ela violava o direito do trabalhador, estava associada à ditadura brasileira e outras coisas gravíssimas. Mas agora, as outras empresas do chamado primeiro mundo são limpas, não pagam comissões e propinas?", questiona, ao apontar que a Lava Jato foi influenciada inclusive por grandes empresas de outros países, que usaram as denúncias de corrupção como arma para praticamente tirar do mapa a concorrência.
"Então, digamos assim, foi bastante positivo que a Odebrecht tivesse sofrido esse processo de denúncia de corrupção para outros grupos econômicos rivais que concorriam com ela no mercado internacional", acrescenta.
Outro fator que mostra a interferência externa na operação, lembra o professor, foi a colaboração direta do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, inclusive com juízes e agentes do sistema de Justiça do Paraná instruídos pelo órgão norte-americano. Bastou pouco mais de um ano para o país entrar em depressão econômica.
"As consequências da operação Lava Jato foram gravíssimas, então o que se deixou de arrecadar é muito maior do que o que supostamente foi devolvido para o Estado mediante os acordos de leniência, mediante todo esse processo de devolução de recursos", conclui.
Jabuticaba Sem Caroço #337 - Sputnik Brasil, 1920, 13.03.2024
Jabuticaba Sem Caroço
Dez anos de Lava Jato: os impactos na sociedade brasileira

O bolsonarismo teria existido sem a operação?

O jornalista, cientista político e professor de relações internacionais Bruno Rocha Lima enfatizou à Sputnik Brasil que a operação Lava Jato ajudou a fortalecer a direita brasileira e intensificou a polarização, historicamente ligada às disputas entre PT e PSDB. Além disso, sob o lema de combate à corrupção, ajudou a levar figuras como o hoje ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para o centro do debate no país. "Não acredito que o bolsonarismo existisse como opção política sem a operação, seria impossível. Esse crescimento se aproveitou de um discurso moralista para se projetar. Não haveria esse espaço todo se não tivesse o conluio da grande imprensa", aponta.
Isso ainda levou, conforme o especialista, à queda do projeto de poder ligado à social-democracia liderado pelo PT, além dos então partidos de oposição, como PSDB e DEM (a sigla se fundiu com o PSL e atualmente é o União Brasil) e o MDB, sempre ligado aos governos de turno. "A Petrobras seria muito mais forte, as empresas brasileiras também e o BNDES não teria sido alvo de denúncias horrorosas feitas pela direita […]. Eu entendo que o tema da corrupção deixa de ser um tabu e passa a ser visto como passível de ser combatido [após a operação], mas o governo Bolsonaro aprimora os sistemas de benefícios indiretos, de modo a sempre haver suspeita e nunca evidência", diz.
O doutor em ciência política e professor universitário Rodolfo Marques acrescenta à Sputnik Brasil ainda que a Lava Jato foi trampolim para o então promotor do Ministério Público Federal no Paraná Deltan Dallagnol e Sergio Moro emergirem na carreira política. "Em um primeiro momento, o Moro adere ao bolsonarismo, torna-se ministro de Estado, posteriormente é pré-candidato a presidente da República, mas não consegue apoio partidário. Tem a candidatura ao Senado, é eleito com uma votação muito alta, assim como Deltan Dallagnol também, como deputado federal", alega.
Apesar de ter vencido a eleição presidencial em 2022, voltando ao poder após seis anos, o especialista acredita que o PT foi o partido mais afetado pela operação, que desde então passou a ter grandes dificuldades em emplacar nomes para os Executivos nos estados e municípios brasileiros.

"O PSDB também foi afetado, houve várias lideranças envolvidas nessas investigações, como o Aécio Neves. O ex-presidente Michel Temer teve investigações contra si. Após ele sair do mandato, em 2019, ele teve uma prisão rápida, deflagrada a partir da operação Lava Jato no Rio de Janeiro. Aquela situação ali do quadrilhão do MDB, cujo caso na época estava com o juiz da Lava Jato no Rio de Janeiro, o Marcelo Bretas", finaliza.


quinta-feira, 16 de maio de 2024

Sobre a criação do Estado de Israel e a Naqba palestiniana

 


14 de maio 2024 - 20:42

No dia 14 de Maio o estado de Israel comemora a sua criação; no dia 15 de Maio comemoramos solenemente o Dia da Naqba, a catástrofe que seguiu diretamente do estabelecimento do Estado de Israel e que viabilizou esse estado através de uma expulsão massiva da população palestiniana árabe.

POR

ALAN STOLEROFF - JUDEUS PELA PAZ E JUSTIÇA

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Refugiados palestinianos.
Refugiados palestinianos. Foto de https://www.palestineremembered.com/.

Em 1967, na sequência da ‘guerra de 6 dias’, Isaac Deutscher, eminente historiador marxista e judeu ideologicamente antissionista, deu uma entrevista à New Left Review em que ele proferiu a frequentemente citada parábola seguinte:

“Um homem saltou uma vez do último andar de uma casa em chamas, onde já tinham morrido muitos membros da sua família. Conseguiu salvar a sua vida; mas, ao cair, bateu numa pessoa que estava lá em baixo e partiu-lhe as pernas e os braços. O homem que saltou não teve escolha; no entanto, para o homem com os membros partidos, ele foi a causa da sua desgraça. Se ambos se comportassem de forma racional, não se tornariam inimigos. O homem que escapou da casa em chamas, depois de recuperado, teria tentado ajudar e consolar o outro sofredor; e este último poderia ter percebido que era vítima de circunstâncias sobre as quais nenhum deles tinha controlo.

Mas vejam o que acontece quando estas pessoas se comportam de forma irracional. O homem ferido culpa o outro pela sua miséria e jura fazê-lo pagar por ela. O outro, com medo da vingança do aleijado, insulta-o, dá-lhe pontapés e bate-lhe sempre que se encontram. O homem pontapeado jura de novo vingança e é de novo esmurrado e castigado. A amarga inimizade, tão fortuita no início, endurece e acaba por ensombrar toda a existência dos dois homens e envenenar as suas mentes.”

(Isaac Deutscher "The Arab-Israeli War", New Left Review (23 Junho, 1967) 

Na altura - logo a seguir a guerra e o início da ocupação da Cisjordânia, os Montes de Golan, Gaza e Jerusalém oriental - esta perspetiva de Deutscher era conveniente e parecia mais que razoável e progressista. Há apenas 22 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, a criação do Estado de Israel, supostamente como abrigo nacional para o povo judeu martirizado, ainda parecia, para muitos, necessária, inevitável e justa - devido à sequência histórica de circunstâncias trágicas que conduziram à fuga desesperada da Europa entre 1932 e 1948 para Palestina de aproximadamente 370.000 refugiados e sobreviventes judeus do Holocausto. (Reza a Declaração de Independência proclamada no dia 14 de Maio de 1948: “O Holocausto nazista, que engolfou milhões de judeus na Europa, provou novamente a urgência do restabelecimento do Estado Judeu, que resolveria o problema da falta de um lar para os judeus, abrindo os portões para todos os judeus e elevando o povo judeu à igualdade na família das nações.”) Ainda hoje esta alegoria sossega a consciência de muita gente de boas intenções e incorpora as bases da legitimação da realização do projeto sionista da criação de um estado judeu na Palestina.

Mas há numerosos problemas com esta imagem do conflito e do seu enquadramento de reações mais ou menos racionais ou irracionais aos desastres sofridos pelas partes.

É uma narrativa parcial, que omite o contexto que precede ao salto da primeira vítima do incêndio e não toma em conta as falhas dos bombeiros. Inferimos imediatamente da citação de Deutscher que o incêndio é o Holocausto na Europa. No entanto, o contexto esquecido é o colonialismo britânico e a colonização sionista na Palestina mandatária; os bombeiros são as Nações Unidas, cujo plano de partição da Palestina, em vez de extinguir as chamas, foi a faísca de mais fogo.

Trata-se infelizmente de uma narrativa que foi construída no contexto do silenciamento da voz e apagamento da experiência do povo indígena da terra palestiniana. É uma narrativa que escamoteia o projeto colonizador sionista na sua origem, cuja pretensão a um estado judaico implicava a deslocação e expulsão da maioria dos habitantes da terra. É uma narrativa que ignora a intencionalidade estratégica dos fundadores sionistas do estado de Israel na conduta da sua ‘guerra de independência’, que, sobretudo através do ‘Plano Dalet’, provocou a Naqba palestiniana, ou seja, a expulsão de até 750.000 habitantes árabes e a destruição de mais que 400 aldeias. Como refere Rachid Khalidi na sua crónica sobre a guerra de 100 anos contra a Palestina (título na versão original em inglês), a Naqba representa uma viragem na história da Palestina de um país maioritariamente árabe para um país com uma maioria judia substantiva através da limpeza étnica e o roubo da propriedade abandonada pelos refugiados.

No rescaldo da guerra de 1967, a Naqba aprofundou-se quando o Estado israelita conseguiu ocupar o que restava da Palestina, que tinha estado nas mãos da Jordânia, da Síria e do Egipto. Seguiu-se à guerra mais um movimento ilegal de expropriação e colonização. Esse movimento, iniciado estrategicamente pelo governo trabalhista vitorioso, transformou-se nas últimas décadas num movimento nacional religioso fanático com a missão messiânica de expulsar a restante população palestiniana e ‘reclamar’ toda a terra da Palestina como o Grande Israel. Este movimento maligno, juntamente com o arrogante e belicista partido Likud, detém atualmente o domínio do Estado israelita. A realidade da Naqba hoje é a consolidação de um regime de ocupação, apartheid e bloqueio e, mais recentemente, a perpetração de uma guerra, de uma violência sem precedentes, contra o povo de Gaza, que Netanyahu e o seu governo de fascistas esperam que produza mais uma vaga de expulsões e morte.

O Isaac Deutscher foi um grande historiador e pensador; certamente, se tivesse vivido, ele teria feito uma autocrítica após a leitura dos trabalhos dos novos historiadores (Walid Khalidi, Benny Morris, Ilan Pappe, etc.) que desde os anos 1980s expuseram as limitações da sua parábola.

Não é (e nunca seria) a nossa intenção aqui demonizar ou culpabilizar a massa de judeus refugiados do antissemitismo e da perseguição e barbárie na Europa – entre os quais encontraram-se parentes nossos. Esses foram efetivamente vítimas de um genocídio e nenhum das potências europeias - nem os Estados Unidos - lhes proporcionou alternativas adequadas. (Além de mais, as potências chaves foram ao longo do tempo promotores de um projeto neocolonial e imperialista para o Médio Oriente em que o Estado de Israel, armado até os dentes, é um pivot fundamental; simultaneamente os Estados Unidos tornou-se o grande defensor das piores tendências políticas israelitas, inclusive promovendo emigração de União Soviética e dos EUA para Israel de gente que vieram a servir a expansão de colonatos nos territórios ocupados.) Mas, ao nosso ver, o não reconhecimento pelo estado e povo de Israel (e dos seus apoiantes e aliados) dos factos inegáveis do Naqba - e a ausência de reparações e compensações significativas - é a fonte de uma cegueira coletiva voluntária que tem permitido a governos sucessivos recusar resolver o conflito, aprofundar a ocupação do povo palestiniano, continuar um projeto de apropriação da Palestina e justificar o bloqueio de Gaza e os crimes de guerra atuais. Nós, ao contrário, reconhecemos o carácter colonial do sionismo e do estado de Israel e a realidade da Naqba palestiniana que esteve na base da fundação do estado. Também reconhecemos que a Naqba de 1947-48 constituiu o ponto de partida de um genocídio prolongado no tempo, realizado por etapas de que o massacre atual em Gaza é o clímax.

É evidente que não podemos voltar atrás e alterar o curso da história. As soluções para o futuro da Palestina e Israel, e as formas de reconciliação pelas injustiças cometidas, terão de ser encontradas reconhecendo as realidades do nosso mundo de hoje. Mas, não é o nosso objetivo hoje propor soluções que, alias, terão de emergir na luta e nas negociações eventuais pela paz. Hoje, as mais evidentes realidades são uma guerra indefensável, assassina e fútil em Gaza, em que mais uma vez Israel se ultrapassa na sua criminalidade, nas suas infrações às leis de guerra, ao direito internacional humanitário ao mesmo tempo se acelera e se exacerba a violência dos colonos e do exército na Cisjordânia. As realidades de hoje necessitam de medidas urgentíssimas: um cessar-fogo imediato e o provisionamento de toda a ajuda humanitária para salvar a população de Gaza e libertação dos reféns. É por isso que estamos aqui a exprimir a nossa solidariedade com o povo palestiniano neste Dia da Naqba.